Pequeno Dicionário da Crise (trechos)
CORRUPÇÃO
Otávio Velho (professor aposentado de antropologia do Museu Nacional)
O uso do termo para referir-se a suborno, depravação, utilização de meios ilegais no serviço público etc. deriva do seu sentido geral como ato, processo ou efeito de tornar-se apodrecido. É interessante, assim, como a corrupção no terrreno jurídico-político deita raízes na observação de um fenômeno natural, certamente com a mediação da sua utilização no terreno da religião. Só que, na tradição cristã, a corrupção associa-se a uma grande anormalidade inicial: o afastamento dos seres humanos de Deus. É provável, portanto, que, no terreno jurídico-político, trate-se muito mais do controle da corrupção do que de acabar com ela.
O controle, portanto, deveria caber à lei. O que parece, no entanto, é que boa parte da vida social não é redutível a um quadro legal universal. Quase que se poderia dizer que os grupos sociais têm suas fronteiras dadas exatamente pelos limites dentro dos quais se praticam usos e costumes aceitos, mesmo que ao arrepio da lei universal. Exemplos não faltam, o que não deixa de levantar delicadas questões no manejo das relações entre o interno e o externo a esses grupos.
Não é à-toa que na política o decoro ganha proeminência. Os momentos de crise são em geral aqueles em que ele é atingido, seja pelo rompimento das regras não escritas, seja porque a disputa política leva uma das partes, como último recurso, a fazer apelo à lei universal, seja por ingerência externa. Nisso a mídia tem hoje importância decisiva na caraterização de escândalos.
Trata-se de não esquecer que o objetivo possível é aprimorar os controles, sem paralisar a política. Nem o irrealismo ou a demagogia dos que dizem pretender (até como arma política) acabar com a corrupção nem a penalização unilateral dos emergentes, obrigados a expor-se para romper os domínios tácitos. Talvez, então, daqui a dez anos não tenhamos tido nenhuma mudança dramática, mas teremos consolidado a democracia se tivermos resistido a golpes que pretendam interrompê-la ou restringi-la sob o pretexto de aperfeiçoá-la e se tivermos, até, alcançado alguma redução na corrupção. Poderíamos mesmo ter alguma mudança cultural resultado que não pode ser planejado, nem colocado como condição inicial.
REPRESENTAÇÃO
Renato Lessa (professor de teoria política na Iuperj)
Dá-se por suposto que o problema da representação política decorre de problemas de escala. O gigantismo dos eleitorados, a extensão dos territórios e a complexidade da agenda pública tornariam impraticável uma organização política fundada na participação direta dos cidadãos. O curioso é que tal princípio foi inventado e desenvolvido quando os eleitorados eram ainda diminutos, o que faz da suposição algo aparentado da superstição.
Para James Madison, um dos clássicos na matéria, o ?esquema da representação? é o que distingue a idéia moderna de república da de democracia. Mais do que um desdobramento natural do princípio clássico da soberania popular, a representação é um artifício pelo qual poucos e bons falam pelos muitos e nem tão bons assim. Ela, na verdade, é um filtro, cuja principal finalidade é a de reduzir os impactos possíveis da potência da ?multidão? sobre a ordem política.
O que resulta da operação e tal filtro é o que, de forma mais apropriada, deveríamos designar como governo representativo. As democracias realmente existentes são regimes nos quais eleitorados coexistentes à população adulta fazem-se representar por meio de mecanismos eleitorais. Se levado a sério, o desenho indica que a relação crucial é a que se estabelece entre representantes e representados, no sentido de torná-la mais densa e genuína.
O pior cenário para o governo representativo é o da redução da representação a um mecanismo no qual os representantes representam a si próprios e no qual a relação mais significativa é a que se estabelece entre eles e o governo. Qualquer analogia com os dias que correm não será acidental.
In Mais, página 6, Folha de São Paulo, domingo, 26 de junho de 2005.
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