domingo, junho 15, 2003

"...
Considerando a história, verificamos que duas fontes da moral orientaram as sociedades ate hoje: as religiões e a razão. As religiões continuam sendo os nichos de valor privilegiados para a maioria da humanidade. A razão, desde que irrompeu, quase simultaneamente em todas as culturas mundiais, no século 6 a.C., no assim cham,ado tempo do eixo (Karl Jaspers), tentou estatuir códigos éticos universalmente válidos. Esses dois paradigmas não ficam invalidados pela crise atual, mas precisam ser enriquecidos, se quisermos estar à altura das intimidações que nos vêm da realidade hoje globalizada.
A crise cria a oportunidade de irmos às raízes da ética e descermos àquela instância na qual se formam continuamente valores. A ética, para ganhar um mínimo de consenso, deve nascer da base última da existência humana. Esta não reside na razão, como sempre pretendeu o Ocidente. A razão não é o primeiro nem o último momento da existência. Por isso não explica tudo nem abarca tudo. Ela se abre para baixo de onde emerge, de algo mais elementar e ancestral: a afetividade. Abre-se para cima, para o espírito, que é o momento em que a consciência se sente parte de um todo e que culmina na contemplação. Portanto a experiência de base não é "penso, logo existo", mas "sinto, logo existo". Na raiz de tudo não está a razão ("logos"), mas a paixão ("pathos").
David Goleman diria: no fundamento de tudo está a inteligência emocional. Afeto, emoção -numa palavra, paixão- é um sentir profundo. É entrar em comunhão, sem distância, com tudo o que nos cerca. Pela paixão captamos o valor das coisas. E o valor é o caráter precioso dos seres, aquilo que os torna dignos de serem e os faz apetecíveis. Só quando nos apaixonamos vivemos valores. E é por valores que nos movemos e somos.
À deriva dos gregos, chamamos essa paixão de eros, de amor. O mito arcaico diz tudo: "Eros, o deus do amor, ergueu-se para criar a terra. Antes, tudo era silêncio, nu e imóvel. Agora tudo é vida, alegria, movimento". Agora tudo é precioso, tudo tem valor, por causa do amor e da paixão.
Mas a paixão é habitada por um demônio. Deixada por si mesma, pode degenar em formas de gozo destruidor. Todos os valores valem, mas nem todos valem para todas as circunstâncias. A paixão é um caudal fantástico de energia que, como águas de um rio, precisa de margens, de limites e da justa medida para não ser avassaladora. É aqui que entra a função insubstituível da razão. É próprio da razão ver claro e ordenar, disciplinar e definir a direção da paixão.
Eis que surge uma dialética dramática entre paixão e razão. Se a razão reprimir a paixão, triunfa a rigidez, a tirania da ordem e a ética utilitária. Se a paixão dispensar a razão, vigora o delírio das pulsões e a ética hedonista, do puro prazer. Mas, se vigorar a justa medida e a paixão se servir da razão para um auto-desenvolvimento regrado, então emergem as duas forças que sustentam uma ética humanitária: a ternura e o vigor.
A ternura é o cuidado com o outro, o gesto amoroso que protege. O vigor é a contenção sem a dominação, a direção sem a intolerância. Ternura e vigor, ou também "animus" e "anima", contróem uma personalidade integrada, capaz de manter unidas as contradições e se enriquecer com elas.
Aqui se funda uma ética, capaz de incluir a todos na família humana. Essa ética se estrutura ao redor dos valores fundamentais ligados à vida, ao seu cuidado, ao trabalho, às relações cooperativas á cultura da não-violência e da paz. ..."
Como fundar a ética hoje
, Leonardo Boffe, Folha de 14 de junho de 2003.

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